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A Equipa Redactorial

domingo, 31 de dezembro de 2006

"Talhas" do Tempo da Minha Avó

Talhar -Segundo o dicionário de língua portuguesa talhar significa cortar, ajustar, esculpir. No contexto popular toma o significado de erradicação de doenças através de rezas e medicina tradicional.

O uso das talhas
A medicina no passado não era tão eficaz como o é hoje em dia. O número de médicos era reduzido e não acessível a toda a população.Transmissão de pais para filhos de certas mezinhas e rezas para a cura de doenças.

Aspectos comuns das Talhas
O ditar de uma lengalenga durante o acto de talhar. O uso corrente de três repetições na maioria dos casos → representação simbólica da santíssima trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). O uso do sinal de cruz → simbolismo da santíssima trindade e ressurreição. A utilização de um elemento simbólico ou medicamento tradicional.

Oração Final
O uso do sinal de cruz → simbolismo da santíssima trindade e ressurreição. A utilização de um elemento simbólico ou medicamento tradicional.

Em louvor de S.Silvestre
Tudo o que faço preste
E que Jesus Cristo
Seja o verdadeiro mestre


Bicho (herpes) - Elemento simbólico: tição
Lengalenga (3 vezes com o tição em sinal da cruz sobre a boca):

Bicho, bichão.Sapo, sapão.
Aranha, aranhão. Cobra do monte.
E bicho de toda a nação.
Esturricado sejas tu como este tição


Aberto (costas) - Elemento simbólico: mulher de dois filhos de ventre.
Lengalenga (a pessoa com dois filhos de ventre colocava os pés sobre as costas da pessoa doente que estava deitada):

Porque paristes? (Pessoa enferma). E tu porque abristes? (Pessoa que talha).
Assim como eu sarei da minha paridura. Também vais sarar da tua abertura.

Trasorelho (papeira) - Elemento simbólico: jugo de bois
Lengalenga (3 vezes com jugo sobre as costas do doente):

Assim como boi e vaca. Cangam aqui. Trasorelho sai-te daqui.

Aftas - Elemento simbólico: luz à noite
Lengalenga (3 vezes):

Oh luzinha da banda de além. Tira as aftas que a minha boquinha têm. Amén.

Dada - Elemento simbólico: 3 canas de vide secas
Lengalenga (3 vezes durante 3 dias em sinal da cruz com as canas de vide):

Quando Deus por mundo andou. Bom Homem lhe deu pousada.
Má mulher lhe fez a cama. E de vides e de lama . Sai-te dada desta mama.

Zipela (Erisipela) - Elementos simbólicos: água da fonte, azeite e carqueja.
Lengalenga (numa malga mistura-se um fio de azeite em água e introduz-se um ramo de carqueja. Depois sobre a zona afectada passa-se o ramo em sinal da cruz 3 vezes):

Pedro Paulo foi a Roma. Jesus Cristo encontrou.
E o Sr. lhe perguntou. Pedro Paulo donde vens?
Oh senhor, venho de Roma. Que morre lá muita gente.
Com quê? Com zipela e zepela. Toda a gente morre dela.
Torna a trás Pedro e talha. Com água da fonte, carqueja do monte e Azeite Bento
Como o que alumia. O santíssimo sacramento. Amén

Pulso aberto -Elemento simbólico: Novelo de lã com uma agulha.
Lengalenga (durante 3 vezes enfia-se uma agulha sem dar o nó no novelo para que agulha entre e saia da mesma maneira):

Eu que coso? (pessoa que talha) Linha quebrada e fio de estroço (pessoa lesionada)
Pois é isso mesmo que coso (pessoa que talha)


Íngua- Elemento simbólico: estrela
Lengalenga (3 vezes a olhar para uma estrela):

Oh estrelinha brilhante. A minha íngua diz.
Que seques tu e viva ela. Mas eu digo que seque ela e vivas tu.


Acrescenta o autor desta pesquisa que: “…algumas pessoas acrescentaram algumas observações entre as quais: a utilização do jugo aquecido pelo bois no talhar do trasorelho e a utilização de uma terrina de água com uma púcara de barro invertida sobre esta no talhar do pulso aberto (disseram-me que esta "talha" só terminava quando a água da terrina fosse toda absorvida pela púcara de barro).”

Rodolfo Rodrigues
in "A Voz de Leça" Ano LIII - Número 10 - Dezembro de 2006
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(Pesquisa feita junto de sua avó, respondendo ao desafio lançado aos elementos do Rancho Típico da Amorosa para recolherem traços da vida Leceira de outros tempos)

Leça da Palmeira - Uma Viagem no Tempo

1 – INTRODUÇÃO

É impossível dissociar Leça da Palmeira do rio Leça, do mar e das suas praias, no entanto, neste trabalho, vamos procurar a sua história cultural: as suas raízes, a sua arquitectura, o seu património, ou pelo menos parte dele e as figuras de destaque a ela ligadas.
Leça foi denominada de S. Miguel de Palmeira, Lessa de Palmeira, Lessa de Matosinhos e de S. Miguel de Moroça. A Infante D.Mafalda, filha de D.Sancho I, menciona a igreja de Moroça, em contrato celebrado com o Bispo do Porto, já em 1260. Em 1543, no reinado de D.João III, o seu padroado foi concedido à Universidade de Coimbra. Em 1758 o lugar de Leça da Palmeira, propriedade do Marquês de Fontes e Abrantes, era habitado por 707 pessoas que viviam das soldadas de pilotos, mestres de navios e marinheiros, tirando-se da terra milho, feijão e algum centeio e cevada. Foi elevada a vila, juntamente com a freguesia de Matosinhos, em 1853, durante o reinado de D.Maria II, e em 28 de Junho de 1984, ainda com a vila de Matosinhos, elevada a cidade.

2 – A QUINTA DA CONCEIÇÃO

Na Boa Nova junto ao farol, onde ainda existe a capela de S.João da Boa Nova, outrora oratório de S.Clemente das Penhas, existiu em tempos um mosteiro onde viviam: “entre penas e rezas um punhado de eremitas franciscanos” (Gomes, 1996:26), tendo-se mudado em 1475 para o
convento da Quinta da Granja, pertença do Mosteiro de Leça do Balio, tendo passado a chamar-se da Conceição.
A actual Quinta da Conceição é um dos ex-libris de Leça da Palmeira, tendo sido adquirida pelo Estado em 1956 por causa do alargamento do porto de Leixões. Em 1483 recebeu uma imagem da Virgem Maria executada pelo mestre Diogo Pires, de Coimbra, em pedra de ançã, oferecida pelo rei D.Afonso V e que actualmente se encontra na igreja paroquial. Na referida Quinta podemos ainda hoje ver: a sua residência senhorial (construção do séc.XIX), um pórtico manuelino, entrada para o mosteiro que lá existiu, o chafariz do claustro, “uma fonte de espaldar em pedra trabalhada” (Marçal, 1957:10), vários bancos de pedra e o tanque rectangular, de S.João, com 8m de comprimento, do meio do qual se ergue um artístico chafariz, cujo pináculo é formado pelo escudo da Ordem Franciscana. Há ainda outra fonte do tempo dos frades, em forma de concha abobadada, em frente a uma capela, a capela de S.Francisco, construída ou restaurada por Nicolau Nasoni, entre 1743 e 1747, vendo-se no altar: “uma apreciável escultura de Cristo na cruz, com o braço direito despregado e pousado no ombro esquerdo dum S.Francisco de roca, que está de pé voltado para o Cristo e junto do crucifixo” (Bento, 1993:109), sendo que o altar é em retábulo do séc.XVIII, em estilo rocócó. Na referida capela, podemos ainda encontrar uma imagem de Cristo morto, do séc.XVII, um Sto.António do séc.XVI e um S.Roque da mesma altura, bem como uma lápide sepulcral de Frei João da Póvoa. A Quinta tem ainda belos jardins e vegetação frondosa, que leceiros, e não leceiros, aproveitam bem em época estival.
Mais recentemente, ainda na Quinta, foi construída uma piscina, cuja autoria é do Arquitecto Siza Vieira, aliás como o são: a piscina das marés, construída em cima da praia de Leça, envolta pelos penedos, e a famosa Casa de Chá da Boa Nova; isto para referirmos alguma da arquitectura mais recente desta cidade.
3 – QUINTA DE SANTIAGO


Quase contígua à Quinta da Conceição, podemos encontrar a Casa Museu da Quinta de Santiago, actual pertença da C.M.Matosinhos, tendo sido mandada construir, na última década do séc.XIX, por João Santiago de Carvalho e Sousa, para sua residência. A obra é assinada pelo Arquitecto Nicola Bigaglia que: “empresta à obra um tom muito diverso no qual elementos neomedievais se vão integrar e dar corpo a um conjunto de ambiência renascentista” (Lima, 1996:21).
Na casa coabitam vários estilos decorativos: neomedieval, Luís XVI, holandês e Arte Nova.
Insere-se num parque grande e frondoso. A casa tem 4 pisos: um térreo, um rés-do-chão elevado, 1º andar e sotão, tendo ainda um torreão, conforme pedido expresso do proprietário. A entrada principal abre para uma galeria onde imperam os motivos familiares (nome e armas de família) e neomedievais, seguida de uma divisão designada de “fumoir” (Lima, 1996:104) que antecede as salas.
O salão Luís XVI faz-nos pensar que entramos noutra casa, é a sala de receber, toda em estilo neoclássico, estuques trabalhados, paredes forradas a seda rosa e tons de ouro, tectos pintados, um bem ornamentado fogão de sala e um balcão, bem iluminado, sobre o jardim.
No rés-do-chão, além deste salão, podemos ainda encontrar a sala de jantar, a sala do piano e o jardim de Inverno.
Uma escadaria, onde se destacam pintados no tecto, os signos astrológicos dos 3 residentes da casa, e onde também encontramos um vitral e um lambrim, dá acesso à zona dos quartos (3), um oratório e aos espaços de higiene.
A torre tem um mirante, cuja vista actual é sobre o porto de Leixões, e antes seria sobre o bucólico rio Leça.
O sotão destinava-se aos quartos dos criados e o piso térreo à cozinha e arrecadações. De salientar que os criados circulavam da cozinha para o sotão e sala de jantar, por uma zona de escadas interiores, sem nunca passarem nos aposentos principais da casa. Actualmente os espaços interiores e exteriores da Casa destinam-se a Museu.
Existe uma exposição permanente de pintores ligados a Leça e Matosinhos, como: António Carneiro (1872-1930), Agostinho Salgado (1905-1967) e Augusto Gomes (1910-1976), ocorrendo várias exposições temporárias durante o resto do ano. Nos jardins também se encontram permanentemente obras de escultura contemporânea, realizando-se de tempos a tempos outras exposições também de escultura, dado que a parte exterior da casa privilegia esta arte.
Em suma, uma visita a não perder.


4 – PERSONALIDADES DA CULTURA


Aproveitando o último parágrafo do tema anterior, mencionaremos de seguida alguns dos nomes mais importantes ligados a esta terra, assim temos:

- Na pintura: António Ramalho, António Carneiro, Agostinho Salgado
- Na arquitectura: Siza Vieira;
- Na música: Óscar da Silva;
- Na literatura: António Nobre;

António Ramalho nasceu em Mesão Frio, a 13.Nov.1859. Aos 11/12 anos foi levado pelo pai para o Porto para aprender um ofício no comércio (marçano numa mercearia de um parente abastado). Como não lhe agradasse o ofício, fugiu para Lisboa, hospedando-se na casa da madrinha, indo estudar Belas - Artes. É conhecido sobretudo pela sua vertente retratista:
retratos de Alexandre Cabanal, D.Maria Adelaide Rocha Viana, Senhora de Preto, entre outros. Pintou, igualmente o retrato do rei D.Carlos. Tem, no entanto, numerosos quadros sobre Leça e o seu rio, como: Ponte de Guifões e Passeio à Boa Nova, referentes ao seu lado paisagista.
António Carneiro, em Matosinhos e em Leça da Palmeira pintou muito, fazendo largo uso do seu culto de artista.
A sua obra mais conhecida, patente na Quinta de Santiago, é o “Ecce Homo”.
Óscar da Silva é o músico mais representativo de Leça da Palmeira, onde jaz no cemitério local. A sonata “Saudade” é a sua obra mais conhecida e insere-se no movimento intelectual gerado no nosso país, depois de 1910, denominado de “saudosismo”. Foi publicado recentemente, com o apoio da C.M.Matosinhos, o livro “Óscar da Silva - Sonata Saudade – A Viagem”, de A.Cunha e Silva, cuja apresentação decorreu no salão nobre dos Paços do Concelho de Matosinhos, com interpretação do 1º Andamento da referida obra, para piano e violino, por professores do Conservatório de Música do Porto, a que tive o privilégio de assistir, memorável.
Falar de Leça sem falar de António Nobre (1867-1900) seria um crime. Nasce no Porto a 16.Nov.1867. Vive em Leça durante os meses de Verão, o suficiente para se enamorar do mar e desta terra, que, por sua vez, em cada canto lhe presta homenagem, veja-se num dos rochedos, junto à Boa Nova, a quadra que transcrevemos:

“Na Praia lá da Boa Nova, um dia
Edifiquei (foi esse o grande mal)
Alto Castello, o que é a phantasia,
Todo de lápis-lazzuli e coral!”

As esculturas em sua homenagem, o seu jazigo no cemitério local, sempre enfeitado pelo povo anónimo, ou a Rua dos Dois Amigos (António Nobre e Alberto Oliveira), ou a Rua Fresca que é uma das artérias mais ligadas às estadias do poeta são outros dos testemunhos que Leça lhe devota.
Em Abril de 1892 publica a sua obra mais emblemática, o “Só”. “Uma poesia despojada de convencionalismos, aberta ao rio da palavra e da vida” (Cláudio, 2001:109).

5 – CONCLUSÃO

Após mencionar aspectos culturais ligados à arquitectura, pintura, música e literatura, muito mais haveria para dizer e escrever sobre Leça da Palmeira e seu património. Este, no entanto, é um trabalho que pretende apenas chamar a atenção para uma localidade rica em História da Cultura Portuguesa.

Manuela T. Rocha dos Santos
in "A Voz de Leça" Ano LIII - Número 10 - Dezembro de 2006
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(1) Este artigo foi realizado no âmbito de um trabalho para a disciplina de História da Cultura Portuguesa, do Curso de Psicologia da Universidade Lusíada do Porto.

sexta-feira, 30 de junho de 2006

Mais Memórias da Agricultura Tradicional

A propósito da pequena reportagem publicada na edição anterior d’A Voz de Leça, sobre a colecção de miniaturas, réplicas de apetrechos e máquinas da agricultura tradicional, devidamente integradas em cenas da vida rural, que o Sr. Macedo, de Gonçalves, se dedica a construir, A Voz de Leça foi, também desta vez, recebida com muita simpatia, pelo Sr. Nogueira e pela D. Albina, primos do Sr. Macedo e um casal conhecido de Leça, também pela sua colaboração a vários níveis na vida Paroquial
O Sr. Nogueira, mentor da ideia de construir estas peças junto do nosso entrevistado anterior, possui duas colecções distintas: uma de miniaturas e outra de peças em tamanho real, que conserva dos tempos em que a agricultura era a principal actividade da família. Embora tendo partido de si a ideia das réplicas em miniatura, foi-as construindo de forma aleatória, sem preocupações de escala ou de as relacionar entre si, pelo que a colecção integra também algumas peças iguais, mas com diferentes tamanhos. No entanto, merece registo o detalhe, os acabamentos, mas acima de tudo, o funcionalismo, já que a “nora” tem água, como se estivesse sobre um poço, o arado possui o mecanismo que permite mudar de direcção, a ceranda e a debulhadora igualmente. Comporta ainda enxadas de vários tamanhos e tipos, os ancinhos vão dos tradicionais ao do de dentes de madeira para ser usado na eira com os cereais, a grade, o saxador, o semeador, a bomba de água, a ratoeira das toupeiras, os funis das chouriçasDepois, pudemos apreciar uma espécie de “museu” de máquinas, alfaias e outros apetrechos dos tempos em que a agricultura era verdadeiramente artesanal, tudo em tamanho natural e a funcionar. Do “espremedor” das uvas ao “espremedor” de banha (um recipiente parecido com o do anterior, mas mais baixo e com perfurações laterais), à debulhadora, uma balança de pesos (daquelas que estão sempre calibradas…), saxadores, arado, “cangas” e “jugos” antiquíssimos, “cofinhos” dos bois, às botas de ir para o campo, à “escova” dos animais…

Este gosto do Sr. Nogueira pela preservação da memória do que foi a principal actividade da zona da Amorosa, onde reside, revela-se também no imponente espigueiro que se destaca ao lado do jardim, onde também uma pedra de espremedor serve de decoração e um tanque de pedra antigo comporta uma palmeira, numa feliz combinação entre o tradicional e o moderno, resultando numa manifestação de claro bom gosto.

A VOZ DE LEÇA agradece ao Sr. Nogueira e à D. Albina a disponibilidade e simpatia com que nos receberam.


Marina e Jorge Sequeira
in "A Voz de Leça" Ano LII - Número 4 - Junho de 2006

terça-feira, 31 de janeiro de 2006

Obra do Padre Grilo - Um Lar Para Muitos Rapazes

“Eu queria uma casa onde os meus meninos, os abandonados da vida, pudessem ter uma atmosfera livre e benfazeja para se desenvolverem na santidade da sua vida.(…) Queria que crescessem sempre na ilustração da alma, na alegria da sua idade para que os possa ilustrar, educar, santificar e colocar para que sejam cidadãos prestimosos à pátria e às suas próprias almas.”

Foi desta vontade do Padre Grilo que nasceu a OBRA DO PADRE GRILO, sedeada desde 1963 na Rua DR. Filipe Coelho, em Matosinhos, mas que, 21 anos antes, fora a Obra Regeneradora dos Rapazes da Rua, sem edifício próprio, funcionando na casa do fundador.
Oriundo de uma família humilde de Ílhavo, Manuel Francisco Grilo nasce a 14 de Maio de 1888, (a mãe era padeira e o pai ‘marítimo’). Viria a ter seis irmãos e a formar-se no Seminário de Coimbra, diocese onde foi ordenado sacerdote em 1910, com 22 anos. Mas os seus tempos de estudante não foram apenas dedicados aos estudos teológicos, tendo também frequentado Agronomia e Medicina ao mesmo tempo que adquiria vastos conhecimentos musicais no seminário. Pelas suas ideias inovadoras a vários níveis, que já aplicava na ajuda aos mais desfavorecidos, incompatibilizou-se com as “altas esferas” civis e viria a ser julgado, condenado e expulso do distrito de Aveiro em 1913. Vem, então, viver para Leça da Palmeira, para casa de uma familiar, tornando-se Capelão da Capela de Santo Amaro, partindo daí toda a sua acção em Matosinhos. Entretanto compõe música e pinta.
Em 1928 funda a Conferência de São Vicente de Paulo da Juventude em Matosinhos, de que resulta a Sopa dos Pobres, que viria a alimentar e vestir cerca de 680 pessoas, na maioria da classe piscatória, que viva em grande miséria. Funda ainda um refúgio para crianças abandonadas e em 1932 as Escolas Católicas, criando ainda o Secretariado do Desemprego. Segue-se, na sua própria casa, a Obra Regeneradora dos Rapazes da Rua, em 1942, que passa depois para a Rua Roberto Ivens e finalmente consegue a “Obra que o consome e que o totaliza”, a sede da OBRA, na Rua Dr. Filipe Coelho, inaugurada a 28 de Julho de 1963.
Para conseguir levar por diante esta sua Obra, vai pedir pelas ruas, vai até às casas de jogo. Envolve-se no negócio das conservas, cujos lucros aplica na sua acção caritativa.
Morre a 1 de Novembro de 1967 e a 1 de Novembro de 1988, os seus restos mortais são transladados para a Capela da OBRA do seu próprio nome, correspondendo ao seu desejo de ficar junto dos “seus meninos”. Ali está, pois, nas palavras da Directora da OBRA, Dra. Conceição Sousa e Silva, “a velar pela Obra que em vida o consumiu e a atrair corações que se reencontram na caridade”.

Numa época em que tanto se ouve falar de crianças mal tratadas, a quem se retirou toda a dignidade, a OBRA DO PADRE GRILO é como um pequeno oásis, talvez não tão conhecido como outras instituições mais mediatizadas, mas bem familiar para a maioria dos habitantes do concelho de Matosinhos e com uma ligação especial a Leça da Palmeira, porque foi aqui que o seu fundador primeiro viveu e o nosso Pároco, Padre Lemos, é presidente da Direcção.

Há cerca de 20 anos nas funções de Directora Executiva da OBRA, a Dra. Conceição Sousa e Silva exerce-as com muito empenho e dedicação, mas sobretudo com muita alegria e é com um sorriso largo e um brilhozinho nos olhos que fala dos seus “meninos” e da OBRA. “Neste momento a OBRA é sobretudo um Lar, onde os rapazes são vestidos, calçados, têm cuidados de higiene e de saúde. Neste aspecto as coisas não são fáceis, mas ainda há quem ajude. Por exemplo, os tratamentos dentários são feitos na Clínica de Leça, por metade do custo.” Actualmente, a maioria dos rapazes tem mais de 10 anos e estão definidos três grandes grupos etários: um, dos mais pequenos até aos que andam no 4º ano, outro dos que andam no 2º ciclo e 7º/8º anos e o dos maiores que frequentam cursos técnicoprofissionais, com zona específica de quartos, horários para as refeições, salas para estudo separadas, salas de televisão, horas de deitar diferentes.
Professora de Físico-Química numa escola secundária de Vila da Feira, quando instada a comparar os seus “meninos” com os outros que tem na escola, não vê grandes diferenças, até nos problemas que apresentam. Os rapazes da OBRA frequentam as escolas de Matosinhos adequadas ao seu ciclo de ensino, sendo que é entre os que frequentam o 2º ciclo que tem surgido o problema do absentismo escolar. “Eles vão à escola mas não vão às aulas, e não temos forma de resolver este problema. Sabemos que entram na escola e que, pelo menos, ficam no recreio a jogar à bola. Isto só se resolve quando houver acordo entre os Ministérios da Educação e da Justiça, no sentido de trazer os professores às instituições para estes casos. No 1º ciclo não acontece porque as escolas são mais pequenas, é sempre o mesmo professor e controla-se melhor.”
Actualmente com cerca de setenta e cinco crianças, entre os dois e os dezoito anos, a OBRA DO PADRE GRILO trabalha em convénio com a Segurança Social, que para ali encaminha rapazes da região do Grande Porto, cujas famílias foram dadas como não capazes de lhes proporcionar um desenvolvimento saudável a todos os níveis. Enquanto que durante muitos anos os rapazes que eram acolhidos chegavam à OBRA de forma quase completamente informal, sem grandes procedimentos burocráticos, quase particularmente, hoje em dia, em especial desde que o caso da Casa Pia de Lisboa foi despoletado para o conhecimento público, o acolhimento tem que acontecer pelas vias legais e se não o for numa fase inicial, o processo tem que ser encaminhado para a Segurança Social, tão breve quanto possível. Apesar de oficialmente a OBRA também ser um centro de acolhimento temporário, diz a Dra. Conceição que “este temporário é um pouco ‘longo’. Temos aqui um rapaz que tinha 9 anos quando chegou e hoje tem 18. Está a preparar-se para voltar para a família. Vai viver com uma tia e tem já uma perspectiva de emprego, mas sei que preferia ficar…”.
A OBRA já teve Jardim-de-infância aberto à comunidade, mas com o aparecimento dos Centros de Acolhimento Temporário, onde é feito o diagnóstico inicial da situação da criança, deixou de se justificar a existência daquela estrutura, e agora os mais pequenitos frequentam o Jardim-de-infância da Paróquia, embora tenha uma Educadora de Infância em permanência e um espaço muito agradável para ocupar os seus tempos na casa.Além destas instalações, na Rua Dr. Filipe Coelho, no centro da cidade, a OBRA é proprietária de uma Quinta em Gondim, que foi adquirida por troca com umas casas e um terreno que recebera por testamento de um benemérito. È ali que é proporcionado aos rapazes um tempo de férias, todos os anos.
Recentemente a OBRA viu as suas instalações urbanas enriquecidas com o novo auditório recentemente inaugurado, que já permitiu a presença da família de muitos dos rapazes na festa de Natal.
O que ajuda a manter a Obra, além dos donativos, é um pouco de tudo o que recebem, do Continente, de padarias da zona, do Mercado da Fruta, de restaurantes. Tudo é aproveitado: as roupas e o calçado são organizadas por tamanhos de acordo com o que os miúdos vestem, os alimentos são acondicionados de acordo com as suas características e preparados com os cuidados de higiene exigidos oficialmente, já que a Inspecção-geral de Saúde também ali faz “visitas” com alguma regularidade.
Depois há uma equipa de funcionários que assegura os serviços, da cozinha à lavandaria, com horários, férias e todos os seus direitos legais assegurados, que, sob a supervisão da Dra. Conceição, tornam esta instituição numa grande família e numa retaguarda forte para aqueles rapazes aprenderem a ser homens capazes de enfrentar uma sociedade às vezes tão cruel e desumanizada.

Também ali se faz um Boletim chamado “AEIOU”, onde se noticia um pouco de tudo o que acontece na OBRA e onde todos participam, dos mais miúdos aos maiores. Tivemos oportunidade de dar um vista de olhos no último número, que era, obviamente, sobre o Natal, e lá estavam anedotas com graça, a participação de alguns miúdos em equipas do Académica de Leça, histórias sobre estrelas…

A VOZ DE LEÇA agradece a disponibilidade e simpatia da Dra. Conceição Sousa e Silva, que nos recebeu e acompanhou na visita às instalações e das funcionárias, Joana, que serviu de guia em parte da visita e Araci, que foi quem nos atendeu, e nos proporcionou um primeiro contacto com a casa.


Marina Sequeira
in "A Voz de Leça" Ano LII - Número 10 - Janeiro de 2006