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A Equipa Redactorial

domingo, 31 de dezembro de 2006

"Talhas" do Tempo da Minha Avó

Talhar -Segundo o dicionário de língua portuguesa talhar significa cortar, ajustar, esculpir. No contexto popular toma o significado de erradicação de doenças através de rezas e medicina tradicional.

O uso das talhas
A medicina no passado não era tão eficaz como o é hoje em dia. O número de médicos era reduzido e não acessível a toda a população.Transmissão de pais para filhos de certas mezinhas e rezas para a cura de doenças.

Aspectos comuns das Talhas
O ditar de uma lengalenga durante o acto de talhar. O uso corrente de três repetições na maioria dos casos → representação simbólica da santíssima trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). O uso do sinal de cruz → simbolismo da santíssima trindade e ressurreição. A utilização de um elemento simbólico ou medicamento tradicional.

Oração Final
O uso do sinal de cruz → simbolismo da santíssima trindade e ressurreição. A utilização de um elemento simbólico ou medicamento tradicional.

Em louvor de S.Silvestre
Tudo o que faço preste
E que Jesus Cristo
Seja o verdadeiro mestre


Bicho (herpes) - Elemento simbólico: tição
Lengalenga (3 vezes com o tição em sinal da cruz sobre a boca):

Bicho, bichão.Sapo, sapão.
Aranha, aranhão. Cobra do monte.
E bicho de toda a nação.
Esturricado sejas tu como este tição


Aberto (costas) - Elemento simbólico: mulher de dois filhos de ventre.
Lengalenga (a pessoa com dois filhos de ventre colocava os pés sobre as costas da pessoa doente que estava deitada):

Porque paristes? (Pessoa enferma). E tu porque abristes? (Pessoa que talha).
Assim como eu sarei da minha paridura. Também vais sarar da tua abertura.

Trasorelho (papeira) - Elemento simbólico: jugo de bois
Lengalenga (3 vezes com jugo sobre as costas do doente):

Assim como boi e vaca. Cangam aqui. Trasorelho sai-te daqui.

Aftas - Elemento simbólico: luz à noite
Lengalenga (3 vezes):

Oh luzinha da banda de além. Tira as aftas que a minha boquinha têm. Amén.

Dada - Elemento simbólico: 3 canas de vide secas
Lengalenga (3 vezes durante 3 dias em sinal da cruz com as canas de vide):

Quando Deus por mundo andou. Bom Homem lhe deu pousada.
Má mulher lhe fez a cama. E de vides e de lama . Sai-te dada desta mama.

Zipela (Erisipela) - Elementos simbólicos: água da fonte, azeite e carqueja.
Lengalenga (numa malga mistura-se um fio de azeite em água e introduz-se um ramo de carqueja. Depois sobre a zona afectada passa-se o ramo em sinal da cruz 3 vezes):

Pedro Paulo foi a Roma. Jesus Cristo encontrou.
E o Sr. lhe perguntou. Pedro Paulo donde vens?
Oh senhor, venho de Roma. Que morre lá muita gente.
Com quê? Com zipela e zepela. Toda a gente morre dela.
Torna a trás Pedro e talha. Com água da fonte, carqueja do monte e Azeite Bento
Como o que alumia. O santíssimo sacramento. Amén

Pulso aberto -Elemento simbólico: Novelo de lã com uma agulha.
Lengalenga (durante 3 vezes enfia-se uma agulha sem dar o nó no novelo para que agulha entre e saia da mesma maneira):

Eu que coso? (pessoa que talha) Linha quebrada e fio de estroço (pessoa lesionada)
Pois é isso mesmo que coso (pessoa que talha)


Íngua- Elemento simbólico: estrela
Lengalenga (3 vezes a olhar para uma estrela):

Oh estrelinha brilhante. A minha íngua diz.
Que seques tu e viva ela. Mas eu digo que seque ela e vivas tu.


Acrescenta o autor desta pesquisa que: “…algumas pessoas acrescentaram algumas observações entre as quais: a utilização do jugo aquecido pelo bois no talhar do trasorelho e a utilização de uma terrina de água com uma púcara de barro invertida sobre esta no talhar do pulso aberto (disseram-me que esta "talha" só terminava quando a água da terrina fosse toda absorvida pela púcara de barro).”

Rodolfo Rodrigues
in "A Voz de Leça" Ano LIII - Número 10 - Dezembro de 2006
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(Pesquisa feita junto de sua avó, respondendo ao desafio lançado aos elementos do Rancho Típico da Amorosa para recolherem traços da vida Leceira de outros tempos)

Leça da Palmeira - Uma Viagem no Tempo

1 – INTRODUÇÃO

É impossível dissociar Leça da Palmeira do rio Leça, do mar e das suas praias, no entanto, neste trabalho, vamos procurar a sua história cultural: as suas raízes, a sua arquitectura, o seu património, ou pelo menos parte dele e as figuras de destaque a ela ligadas.
Leça foi denominada de S. Miguel de Palmeira, Lessa de Palmeira, Lessa de Matosinhos e de S. Miguel de Moroça. A Infante D.Mafalda, filha de D.Sancho I, menciona a igreja de Moroça, em contrato celebrado com o Bispo do Porto, já em 1260. Em 1543, no reinado de D.João III, o seu padroado foi concedido à Universidade de Coimbra. Em 1758 o lugar de Leça da Palmeira, propriedade do Marquês de Fontes e Abrantes, era habitado por 707 pessoas que viviam das soldadas de pilotos, mestres de navios e marinheiros, tirando-se da terra milho, feijão e algum centeio e cevada. Foi elevada a vila, juntamente com a freguesia de Matosinhos, em 1853, durante o reinado de D.Maria II, e em 28 de Junho de 1984, ainda com a vila de Matosinhos, elevada a cidade.

2 – A QUINTA DA CONCEIÇÃO

Na Boa Nova junto ao farol, onde ainda existe a capela de S.João da Boa Nova, outrora oratório de S.Clemente das Penhas, existiu em tempos um mosteiro onde viviam: “entre penas e rezas um punhado de eremitas franciscanos” (Gomes, 1996:26), tendo-se mudado em 1475 para o
convento da Quinta da Granja, pertença do Mosteiro de Leça do Balio, tendo passado a chamar-se da Conceição.
A actual Quinta da Conceição é um dos ex-libris de Leça da Palmeira, tendo sido adquirida pelo Estado em 1956 por causa do alargamento do porto de Leixões. Em 1483 recebeu uma imagem da Virgem Maria executada pelo mestre Diogo Pires, de Coimbra, em pedra de ançã, oferecida pelo rei D.Afonso V e que actualmente se encontra na igreja paroquial. Na referida Quinta podemos ainda hoje ver: a sua residência senhorial (construção do séc.XIX), um pórtico manuelino, entrada para o mosteiro que lá existiu, o chafariz do claustro, “uma fonte de espaldar em pedra trabalhada” (Marçal, 1957:10), vários bancos de pedra e o tanque rectangular, de S.João, com 8m de comprimento, do meio do qual se ergue um artístico chafariz, cujo pináculo é formado pelo escudo da Ordem Franciscana. Há ainda outra fonte do tempo dos frades, em forma de concha abobadada, em frente a uma capela, a capela de S.Francisco, construída ou restaurada por Nicolau Nasoni, entre 1743 e 1747, vendo-se no altar: “uma apreciável escultura de Cristo na cruz, com o braço direito despregado e pousado no ombro esquerdo dum S.Francisco de roca, que está de pé voltado para o Cristo e junto do crucifixo” (Bento, 1993:109), sendo que o altar é em retábulo do séc.XVIII, em estilo rocócó. Na referida capela, podemos ainda encontrar uma imagem de Cristo morto, do séc.XVII, um Sto.António do séc.XVI e um S.Roque da mesma altura, bem como uma lápide sepulcral de Frei João da Póvoa. A Quinta tem ainda belos jardins e vegetação frondosa, que leceiros, e não leceiros, aproveitam bem em época estival.
Mais recentemente, ainda na Quinta, foi construída uma piscina, cuja autoria é do Arquitecto Siza Vieira, aliás como o são: a piscina das marés, construída em cima da praia de Leça, envolta pelos penedos, e a famosa Casa de Chá da Boa Nova; isto para referirmos alguma da arquitectura mais recente desta cidade.
3 – QUINTA DE SANTIAGO


Quase contígua à Quinta da Conceição, podemos encontrar a Casa Museu da Quinta de Santiago, actual pertença da C.M.Matosinhos, tendo sido mandada construir, na última década do séc.XIX, por João Santiago de Carvalho e Sousa, para sua residência. A obra é assinada pelo Arquitecto Nicola Bigaglia que: “empresta à obra um tom muito diverso no qual elementos neomedievais se vão integrar e dar corpo a um conjunto de ambiência renascentista” (Lima, 1996:21).
Na casa coabitam vários estilos decorativos: neomedieval, Luís XVI, holandês e Arte Nova.
Insere-se num parque grande e frondoso. A casa tem 4 pisos: um térreo, um rés-do-chão elevado, 1º andar e sotão, tendo ainda um torreão, conforme pedido expresso do proprietário. A entrada principal abre para uma galeria onde imperam os motivos familiares (nome e armas de família) e neomedievais, seguida de uma divisão designada de “fumoir” (Lima, 1996:104) que antecede as salas.
O salão Luís XVI faz-nos pensar que entramos noutra casa, é a sala de receber, toda em estilo neoclássico, estuques trabalhados, paredes forradas a seda rosa e tons de ouro, tectos pintados, um bem ornamentado fogão de sala e um balcão, bem iluminado, sobre o jardim.
No rés-do-chão, além deste salão, podemos ainda encontrar a sala de jantar, a sala do piano e o jardim de Inverno.
Uma escadaria, onde se destacam pintados no tecto, os signos astrológicos dos 3 residentes da casa, e onde também encontramos um vitral e um lambrim, dá acesso à zona dos quartos (3), um oratório e aos espaços de higiene.
A torre tem um mirante, cuja vista actual é sobre o porto de Leixões, e antes seria sobre o bucólico rio Leça.
O sotão destinava-se aos quartos dos criados e o piso térreo à cozinha e arrecadações. De salientar que os criados circulavam da cozinha para o sotão e sala de jantar, por uma zona de escadas interiores, sem nunca passarem nos aposentos principais da casa. Actualmente os espaços interiores e exteriores da Casa destinam-se a Museu.
Existe uma exposição permanente de pintores ligados a Leça e Matosinhos, como: António Carneiro (1872-1930), Agostinho Salgado (1905-1967) e Augusto Gomes (1910-1976), ocorrendo várias exposições temporárias durante o resto do ano. Nos jardins também se encontram permanentemente obras de escultura contemporânea, realizando-se de tempos a tempos outras exposições também de escultura, dado que a parte exterior da casa privilegia esta arte.
Em suma, uma visita a não perder.


4 – PERSONALIDADES DA CULTURA


Aproveitando o último parágrafo do tema anterior, mencionaremos de seguida alguns dos nomes mais importantes ligados a esta terra, assim temos:

- Na pintura: António Ramalho, António Carneiro, Agostinho Salgado
- Na arquitectura: Siza Vieira;
- Na música: Óscar da Silva;
- Na literatura: António Nobre;

António Ramalho nasceu em Mesão Frio, a 13.Nov.1859. Aos 11/12 anos foi levado pelo pai para o Porto para aprender um ofício no comércio (marçano numa mercearia de um parente abastado). Como não lhe agradasse o ofício, fugiu para Lisboa, hospedando-se na casa da madrinha, indo estudar Belas - Artes. É conhecido sobretudo pela sua vertente retratista:
retratos de Alexandre Cabanal, D.Maria Adelaide Rocha Viana, Senhora de Preto, entre outros. Pintou, igualmente o retrato do rei D.Carlos. Tem, no entanto, numerosos quadros sobre Leça e o seu rio, como: Ponte de Guifões e Passeio à Boa Nova, referentes ao seu lado paisagista.
António Carneiro, em Matosinhos e em Leça da Palmeira pintou muito, fazendo largo uso do seu culto de artista.
A sua obra mais conhecida, patente na Quinta de Santiago, é o “Ecce Homo”.
Óscar da Silva é o músico mais representativo de Leça da Palmeira, onde jaz no cemitério local. A sonata “Saudade” é a sua obra mais conhecida e insere-se no movimento intelectual gerado no nosso país, depois de 1910, denominado de “saudosismo”. Foi publicado recentemente, com o apoio da C.M.Matosinhos, o livro “Óscar da Silva - Sonata Saudade – A Viagem”, de A.Cunha e Silva, cuja apresentação decorreu no salão nobre dos Paços do Concelho de Matosinhos, com interpretação do 1º Andamento da referida obra, para piano e violino, por professores do Conservatório de Música do Porto, a que tive o privilégio de assistir, memorável.
Falar de Leça sem falar de António Nobre (1867-1900) seria um crime. Nasce no Porto a 16.Nov.1867. Vive em Leça durante os meses de Verão, o suficiente para se enamorar do mar e desta terra, que, por sua vez, em cada canto lhe presta homenagem, veja-se num dos rochedos, junto à Boa Nova, a quadra que transcrevemos:

“Na Praia lá da Boa Nova, um dia
Edifiquei (foi esse o grande mal)
Alto Castello, o que é a phantasia,
Todo de lápis-lazzuli e coral!”

As esculturas em sua homenagem, o seu jazigo no cemitério local, sempre enfeitado pelo povo anónimo, ou a Rua dos Dois Amigos (António Nobre e Alberto Oliveira), ou a Rua Fresca que é uma das artérias mais ligadas às estadias do poeta são outros dos testemunhos que Leça lhe devota.
Em Abril de 1892 publica a sua obra mais emblemática, o “Só”. “Uma poesia despojada de convencionalismos, aberta ao rio da palavra e da vida” (Cláudio, 2001:109).

5 – CONCLUSÃO

Após mencionar aspectos culturais ligados à arquitectura, pintura, música e literatura, muito mais haveria para dizer e escrever sobre Leça da Palmeira e seu património. Este, no entanto, é um trabalho que pretende apenas chamar a atenção para uma localidade rica em História da Cultura Portuguesa.

Manuela T. Rocha dos Santos
in "A Voz de Leça" Ano LIII - Número 10 - Dezembro de 2006
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(1) Este artigo foi realizado no âmbito de um trabalho para a disciplina de História da Cultura Portuguesa, do Curso de Psicologia da Universidade Lusíada do Porto.