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A Equipa Redactorial

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

GALARDÕES DE MÉRITO DE LEÇA DA PALMEIRA - A "MUSA LECEIRA"

A Junta de Freguesia de Leça da Palmeira levou a efeito uma cerimónia de entrega dos Galardões de Mérito da Freguesia, onde foram distinguidos com:
- Galardão de Mérito Desportivo, a Fernando José de Oliveira Pereira que habita em Leça da Palmeira há vários anos, é atleta paraolímpico de Boccia e praticante de Vela adaptada. Um desportista que nunca desiste, sendo um exemplo de coragem, perseverança e espírito de conquista, ao nível humano e desportivo.
- Galardão de Mérito Cultural, ao Rancho Típico da Amorosa por se tratar de uma colectividade com pergaminhos que honra e eleva o nome de Leça da Palmeira no País e por esse Mundo Fora.
Não esquecermos os nossos primos Henriqueta e Hermano que tanto deram a esta colectividade.
- Galardão de Mérito Cívico, ao Padre Henrique Marcelino, um nosso amigo de há longa data, pois com ele fizemos um dos primeiros cursos da Juventude Rebelde, e que com a sua simplicidade e modéstia é para todos um modelo naquilo que à acção cívica diz respeito. O seu espírito altruísta e empreendedor inspira-nos e faz-nos seus seguidores.
- Medalha de Honra, a título póstumo, a Jorge Bento, o investigador e historiador de Leça da Palmeira, O nosso, dos leceiros, saudoso amigo, de múltiplos talentos mas acima de tudo o cronista das memórias leceiras, que legou às gerações presentes e futuras um património documental absolutamente extraordinário.
Enquadrando todo este espírito artístico Miguel Rocha dos Santos apresentou-nos um conto inédito de sua autoria e que por si só justifica a sua alma artística mas também a de todos aqueles que enaltecem esta nossa terra, e que o levou a dizer:
“Há muitos, muitos anos, quando tudo era simples e a magia permeava o mundo, um maravilhoso nascimento aconteceu.
Numa das raras ocasiões em que todos os astros se alinham no firmamento, o Sol e a Lua uniram-se, e no abraço do eclipse criaram, com o seu Amor, uma linda menina.
Se alguém tentasse descrevê-la, certamente seria incapaz, pois seria preciso ser-se deveras especial para conseguir compreender e por em palavras como é uma linda menina nascida do Amor do Sol e da Lua.
Basta dizer que o comprimento e cor do seu cabelo se alteravam à sua vontade, os olhos e timbre de voz consoante a sua disposição, e o tom da pele dependia de quem a via, e nunca, nunca envelhecia.
Na verdade, durante muito tempo ninguém a viu, excepto o Pai – Sol e a Mãe – Lua, que para tomarem bem conta do seu tesouro, a puseram a morar num castelo de nuvens, alto nos Céus, forte para a proteger, fofo para não se magoar. Que fascínio de castelo aquele! Enorme, todo branco, repleto de móveis de nuvem: cadeiras, mesas, armários, roupeiros, camas, quadros, tapetes, o que conseguirem imaginar. E as cortinas eram tecidas de gotículas de chuva minúsculas que, quando o Pai – Sol espreitava por entre elas a ver como estava a filha, projectava com a sua luz as cores do arco-íris para o interior, tornando o lar ainda mais surreal e sonhador. Aliás, uma das brincadeiras favoritas da menina era esconder-se pelos numerosos recantos da casa, só para o Pai demorar mais a encontra-la, e pintar o castelo multi – color.
Foi assim crescendo nela o gosto pela pintura, e oh! como ela pintava… quadros atrás de quadros, do dia, da noite, do arco-íris, do Pai – Sol e da Mãe – Lua (muitas vezes separados, pouquinhas juntos), das estrelas, dos planetas, das aves que voavam mais alto e cantavam para ela… Só que, pouco a pouco, a menina foi-se cansando de pintar os mesmos temas vezes sem conta. Ansiava por conhecer o mundo lá em baixo, do qual apenas tinha vislumbres, e as histórias que lhe contavam as amigas aves.
Pediu então licença ao Pai e à Mãe que a deixassem ir à Terra, para explorar novos assuntos a pintar, mas eles, receosos, logo lhe negaram o desejo: - “ Sabe-se lá o que poderia acontecer… ” –
A linda menina entristeceu, mas daquela ideia não mais se esqueceu. Movida pela sua curiosidade temerária, teimou e matutou em como empreender a sua jornada, e por fim decidiu. Uma noite, enquanto a Mãe – Lua se ocupava a mudar de fase para Lua Nova, a menina pegou em quantos pincéis e tintas pôde, encheu como uma trouxa a fronha da almofada e fugiu pela janela, escalando a muralha de nuvem. Uma vez descida, pediu a um cisne que passava que a levasse às cavalitas, e ele logo aceitou.
Voaram grande distância, pois a Terra ainda era longe, e mesmo quando cá chegaram, longamente vaguearam, incontáveis vistas encontraram, centenas de culturas conheceram, e muitas pessoas tocaram, até que um dia chegaram a um lugar que só podia ser o seu destino. Um local de tal modo aprazível que a menina não pôde deixar de se apaixonar.
O cisne, depois de certificar-se que a menina ficava segura, quis partir, e a menina deixou, pois não se pode pedir a um cisne que abdique da felicidade de voar. Em sua homenagem, ela pintou mesmo no chão daquela terra a constelação do Cisne, para nunca o esquecer, e para ele saber onde procurar quando a quisesse visitar.
Por longos momentos, a filha do Sol e da Lua maravilhou-se com cada cristal de areia que ali havia, com a calma do rio, que silenciosa chocava com a fúria incontida do mar. Correu praia e penedia atrás das gaivotas e chapinou nas poças como as crianças gostam de fazer.
Na foz do rio brincou com os golfinhos. Mais acima, outra surpresa! Um tapete de relvas, uns fetos, uns carvalhos, uns eucaliptos… Nunca tinha visto nenhuns tão belos. Aqueles tons de verde inimitáveis, o toque áspero da casca, o alcance dos ramos como que querendo abraça-la, a fresca essência que inspira a vida… Aquilo agradou-lhe tanto que resolveu, misturando as suas tintas, usar o próprio ar como tela e pintar ali mesmo mais árvores, criar um pequeno bosque, povoado de animais. Por aí continuou, a pintar novas árvores noutros locais, e rochas e penedos na praia, a cantar e a dançar e a brincar.
Certo dia, começou a sentir-se estranha, algo que desconhecia, saudade. Sentia-se só, e quanto a isso teve de agir. Lembrou-se então de construir um farol na foz do rio, de chama acesa para chamar companhia. Ora, como ela era pequenina, e as pedras muito pesadas, demorou imenso até ter o farol pronto, e mesmo então, este era demasiado diminuto e pouco visível, para ser capaz de atrair muitas pessoas.

Por pouco se deixava vencer, mas acendeu-o à mesma, porque a esperança nunca morre. Esperou e esperou, e por fim lá surgiu alguém. Era um senhor velhinho, que ao chegar ao pé da menina, logo disparou: - “ Quem és tu, linda menina? Que fazes aqui sozinha? Foste tu que acendeste o farol? Para quê? “ –
- “ Calma, “ - disse ela – “ Uma pergunta de cada vez! Eu sou filha do Sol e da Lua, estou aqui para pintar o mundo, e fui eu que construi e acendi o farol, para chamar gente que me ajudasse. Afinal, não posso fazer tudo sozinha! E tu, quem és? “
- “ Bem, eu sou o Arquitecto. Isso e pedreiro. Dá jeito, faço os projectos e trabalho a alvenaria, e digo-te já, sem ofensa, que para vir mais gente, temos de construir um farol maior. “ –
- “Temos? Quer dizer que me ajudas? “ –
- “ Claro que sim! Olhando em meu redor, penso que compreendo a tua visão, e pretendo participar. “ –
Desta conversa nasceu uma grande amizade, da qual se colheram os melhores frutos.
Escolheram um local de rochas fortes, bem visível tanto de terra como de mar, e a menina lá pintou um grande farol, que o Arquitecto projectou e construiu. Com alguma luz reflectida do olhar dela, acenderam-no, para dar a quem quer que visse, a Boa Nova daquele lugar mágico e enternecedor.
Para a menina, inspirado nas histórias que ela lhe contava, o velho ergueu em pedra um castelo igual ao que ela habitara nuvens, e chamou-lhe “ das Neves ”, por estas também serem brancas.
Aos poucos, o povo foi chegando: Sapateiros e costureiras, lavradores e lavadeiras, fidalgos estrangeiros que vinham a ares, escultores, poetas, pintores, músicos e escritores, todos eles sonhadores. E imaginem só, até foi preciso um cronista, para guardar as suas memórias! Para eles, o Arquitecto fez casas baixinhas, ajardinadas, de branco caiadas e portas e janelas verdes.
Entretanto, os viajantes marítimos sofriam dificuldades em aportar, devido à impetuosidade das águas, portanto, os fidalgos opinaram que era de se construir um porto de mar. E foi a partir daí que a situação piorou…
A menina pintou o porto, o velhinho Arquitecto desenhou-o, mas mal começou a obra, deparou-se com três desafios: O primeiro era a sua idade avançada, que já não o deixava trabalhar como dantes; o segundo era a força do mar, que por vezes, tão altas eram as suas ondas, que quase o arrastavam para longe; e o terceiro, pior que os outros, era algo que veio assombra-lo e atormentá-lo enquanto trabalhava.
Vinda das profundezas, gigantesca, terrível, dantesca, uma serpente marinha! Despertara com a algazarra dos navios e das obras e agora acossava os marinheiros e viajantes, e ao Arquitecto mais que aos outros. O cheiro peçonhento que deitava era nauseabundo e empestava o ar. As suas escamas brilhavam temíveis entre o verde e o azul enquanto rasgava as águas na sua senda de destruição. Os gritos lancinantes trespassavam os corações de quem os escutava. Nem barcos, nem gentes, nem o paredão inacabado resistiam a tamanha ira.
Para o velho conseguir terminar o seu trabalho, foi necessária a colaboração de vários artistas. Aprendeu ele, já idoso, a lição de que precisamos todos uns dos outros. Primeiro, veio um compositor, que tocou uma saudosa sonata para aplacar o mar. De seguida os escultores, cedendo a experiência de trabalhar a pedra. Depois os engenheiros, com uma incrível criação: um gigante de ferro, com possantes braços que acarretavam toneladas e toneladas de rocha. A este gigante de ferro a menina deu vida com o seu pincel, e baptizou-o de Titã, para que combatesse as investidas da serpente, que gritava aos quatro ventos que a deixassem dormir.
Encorajado por tamanhas amizades, o Arquitecto conseguiu, enfim, concluir a sua obra, mas pagou o preço último. Caminhou, afastando-se, muito velhinho, com o Por do Sol às costas, deu uns passos e tombou. A menina acorreu-lhe, mas nem ela, nem todos os médicos do lugar lhe puderam valer. E assim, a menina aprendeu uma importante e dolorosa lição: que nada nem ninguém é eterno, e o nosso tempo tem de passar… Ajoelhou-se junto do seu velho amigo, e dali jurou não mais sair…
Ao ver os seus olhos tingidos de lápis-lazúli, rosto escorrido de lágrimas, um poeta apressou-se para junto do farol que o guiara, e ali nos penedos talhou versos solitários.
Sem que ele se apercebesse, a serpente marinha aproximara-se, sorrateira, dele. Assustando-o, silvou: - “ De onde te vem tão profunda mágoa, Nobre poeta, que nem o temor a mim daqui te afasta? “-
E o poeta contou-lhe o sucedido…
Ainda ele não tinha terminado, já a serpente se precipitava terra a dentro, para onde estava a menina com o velho caído. Ao vê-los, a serpente chorou, e com a menina se lamentou. Afinal, agora que pensava nisso, sentia saudades das lutas com o velho, da sua voz a amaldiçoa-la, e do som do seu martelo e cinzel sobre a pedra. Também a serpente aprendeu uma lição: dar valor às amizades enquanto se as tem.
Disse ela então à menina: - “ Se eu prometer tomar bem conta dele, tu prometes continuar a pintar, cantar, dançar e brincar por aqui? “
E a linda menina, num pranto, acedeu.
A serpente marinha velou sobre o corpo do velhinho até ela própria morrer, e onde jaz o seu corpo nasceram frondosas árvores, cujas copas pintadas pela menina fazem lembrar uma serpente marinha a nadar.
O Pai – Sol e a Mãe – Lua, comovidos, resolveram dar aos pintores ainda melhores paisagens para pintar, aos poetas melancolia para escrever, e aos músicos alegria para compor.
A linda menina, essa tornou-se invisível para não se apegar tanto a mais ninguém, e continua a inspirar quem com ela se cruza. Escuta-se a sua alma na Sonata Saudade de Óscar da Silva, a sua memória nos livros do seu Guardião Jorge Bento. Sente-se o seu misticismo no desenho da constelação do cisne, composto por cinco capelas locais (Santo Amaro na cauda, Espírito Santo no corpo, Santana à direita, Santa Catarina à esquerda, e S. Clemente das Penhas à cabeça). Vê-se o lampejo dos seus olhos no Farol da Boa Nova, a sua mágoa ali ao lado, nos versos de António Nobre, cravados no penedo. Respira-se o seu perfume entre o arvoredo das Quintas da Conceição e Santiago, a sua imaginação no Forte de Nossa Senhora das Neves, a sua força de vontade no Castelinho da praia, que já foi um Miramar. Ao restolhar do vento, dança lá na ponta do paredão, ao pé do antigo Titã que ainda nos guarda. Rejubila na praia, o seu riso ecoa nas rochas, enrolado na espuma das ondas. Em qualquer rua, o seu canto sussurrado incendeia-nos o íntimo! O nome da terra escolhida é Leça da Palmeira! O nome da menina, da linda menina, a filha do Sol e da Lua, que veio à Terra de um castelo nas nuvens… Ah! O nome dela, que nos arrebata… É MUSA! A MUSA LECEIRA!
Espalhem a nossa lenda!”
Está de parabéns quem o convidou, Dr. Luís Soares. Está de parabéns quem o lançou nestas andanças, o prof. A. Cunha e Silva. Está de parabéns quem o tem apoiado, o Dr. Albano Chaves; porque todos proporcionaram a um jovem natural de Leça da Palmeira a oportunidade de mostrar o que sabe e faz, contrariando a ideia daqueles que vão buscar gente de fora pagando, e que nada nos acrescentam.

Eng.º Rocha dos Santos in "A Voz de Leça" Ano LVI - Número 6 e 7 - Agosto/Setembro e Outubro de 2009